quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Contos


UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR
Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longíquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: "Você não tem coisa nenhuma no fígado". Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café - e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:
- Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! E é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:
- Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e, no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
- Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.

Análise:

Clarice Lispector descreve, em seu conto, uma menina nascida e crescida em uma fazenda no interior de Minas Gerais. Desde criança a personagem observa galinhas, as conhecendo profundamente. Uma das características da escrita dessa autora é a presença de seres irracionais, como os animais, dando questionamentos filosóficos metafísicos a seu texto.

Logo no primeiro parágrafo há a apresentação da metáfora mais usada, a galinha é relacionada ao feminino e o galo é a representação do masculino: “A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana”.

Apesar de todo o apreço que a menina tinha por galinhas, só tinha duas, Pedrina e Petronilha, e as tratava como se fossem humanas e o fato de serem galinhas era considerado como algo a ser curado: “A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas”.

Nessa obra, o espaço e o tempo são encarados de modo incomum, o espaço tem um papel secundário e o tempo é o psicológico, com momentos rápidos e lentos, dependendo da importância do fato.

O conflito do texto é o fato de a menina, por ser “uma criatura de grande capacidade de amar”, enxergar nas galinhas algo humano.  E por esse motivo a menina fica tão chateada ao perceber que uma de suas galinhas foi morta e devorada pelo seu pai, não aguentando nem olhar para ele. O clímax é a morte de Petronilha.

Alguns anos após a morte das duas galinhas, a menina um pouco maior, teve Eponina. Com essa não houve os mesmos sentimentos, já que o coração da menina já estava machucado. “O amor por Eponina: dessa vez um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor”.

Ao matarem Eponina a menina compreendeu que “uma galinha é sozinha no mundo” e ao aplicarmos a metáfora em que há a representação do feminino, podemos concluir que o que a autora quer dizer é que uma mulher que quer se preservar, não ama.

Ao comer o animal que foi feito ao molho pardo (feito com o sangue), a menina conclui que assim a galinha se tornaria dela, incorporando-se ao seu corpo através da digestão.

A epifania do conto é exatamente o fato de a menina ter si tornado moça, tendo a menarca, esse fato é mostrado ao enjerir o sangue da galinha e incorpora-lo a si. Ao mesmo tempo a menina compreendeu que “havia os homens”, ou seja, que o homem mesmo matando os seus antigos amores, agora era o seu objeto de amor, e seu problema.

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